Viu flores lá embaixo. O ar a
sua frente adocicou-se, de modo que a cabeça, sempre pesada àquela hora do dia,
inclinou-se automaticamente, como farejando. Tola! Como se fosse possível
alcançar algo a tantos metros de distância. Deu conta do engano dos sentidos,
era um cheiro de imagem!? Interrogou a sí mesmo, um alienígena lhe pregava
peças nos sentidos. Indagou com os olhos as ultimas informações do quadro urbano. Lá embaixo,
contemplava grandes flores orientais amparadas em pesados cabelos negros, era
uma menina. Tão pequena parecia dali. Destoante da multidão em saltos, tanto
pela cor dos cabelos de flor, colorido natural em meio ao odor dos ocres e metálicos
artificiais; quanto por seus gestos simples, próprio das crianças, das que sorriem com o vento.
Será mesmo bela? Pergunta calado
o infeliz que já duvidava do que podia realmente conhecer. Do alto do prédio, ídolo de
concreto que abraçava em sombras os milhares de uniformes ambulantes, esbarrando-se
impassivos, trocando odores, cartões, caretas, às vezes a carteira (surrupiada
por um anônimo, faminto ou cleptomaníaco). Nunca, entretanto, um olhar, porque
olhar era um crime na multidão. Importunar outro espirito com seu reflexo, dando
ciência ao corpo cansado dos seus problemas. Não era de bom modo. Certo era olhar
para o horizonte, que fosse o horizonte do próximo cruzamento, do próximo
supermercado ou favela.
Era o mundo dos homens! Sempre
em escalas (concluía a ideia fugidia). Comprimia os olhos, como se com isso
mudasse a lente, podendo ver mais de perto, talvez, distinguir indivíduos naquele
cordão veloz de formigas. Sussurrando baixo a sua unica real companhia, a senhora consciência. – É a poeira do céu, os fios de cabelo branco, a ruga
abaixo dos olhos, o chiclete na boca, a garganta seca, o ácido no estomago, as
moedas no bolso, o calor das pernas, a lama impregnada nos sapatos, as baratas
cegas delirantes, os vermes do subsolo, o núcleo quente e denso, o magma que
mantém a turba. E soma-se tudo de novo. Lógica de esfera. Vida humana em um risco
de tempo, um esplendor do simples misturado ao asco do medíocre.
Por essas e outras ficava em
cima do prédio o homem, esperava aquela massa escorrer pelas ruas, perdendo-se
na furiosa corrente do cotidiano. À noite quando os barulhos eram reduzidos
aos gemidos de fome e alucinação, ia também ele, recolher-se em seu buraco frio
de sonho perturbado. A cena se repetia cotidianamente, de estranhar pela
pontualidade. Os companheiros de trabalho incomodavam-se com a situação. Um
hábito curioso, perder as preciosas horas de folga, sentado! Esquisitice
surravam os de gel no cabelo. Tendência suicida diagnosticava o de sapatos
engraxados. Ao ser de carne e osso submetido ao olho do sol no fim da tarde,
pouco importava as opiniões. Previsíveis são os homens e é da sua condição
natural adaptar-se, julgando o mais rápido possível, precaução da
sobrevivência. Pensou tudo entre duas compressões do pulmão, era tudo que tinha a dizer sobre
sua fama no trabalho (era ele também homem).
Naquele dia, esteve
ali sentado por algum tempo. Talvez mais que o comum? Quem saberia? Mesmo para
os que cuidavam da sua vida, os fofoqueiros do trabalho, seria anormal deixar a rotina para vigiar seu hábito. Ele tinha sim um relógio, nunca, porém conferia as horas
antes de sair da sala de trabalho e tendo certeza que a empresa alterava as
horas esticando um pouco mais o dia, era impossível ter uma base para acercar-se a quanto tempo estava
ali. Levantou as vistas do relógio notando que a luz do ambiente se esvaia. O
sol espiou a ultima vez os rostos rígidos e baixou a face no horizonte. O
homem, que já pensava em partir refletiu ainda, em retrospectiva, o havia o incomodado durante a primeira olhada lá embaixo. Apesar do vento áspero que
anunciava a noite, perdeu-se ainda um momento, suspirou como que tragando a lembrança. - Ha, sim, vi uma pequena menina de flores na cabeça. E refez a pergunta que o acompanhava desde as luzes da juventude. - Era mesmo bela, a menina, a
esperança, a fragilidade humana?
[L.B]