Por vezes abandonamos-nos em um caminho. Deixa-se
a si mesmo. Como se houvesse em nós algo a se chamar de casa. E o
desterro não constituísse uma condição dos nossos pés. Pés, que pela pressão atmosférica primeiro envelhecem.
Logo, e não demora, para que todo o resto o siga. As memórias, penduradas por um
fio fino neural, reluzente, podem não mais estar em um milésimo da métrica
do tempo.
As vezes damos conta de que a vida é um sopro. É quando
as nuvens escurecem que me ocorre. Esse céu tingido escuro, de cinza colossal,
como face de uma consciência adulta amuada, que juntou grão a grão os ocorridos passados. Lembra-se da morte fria, desassistida por outros, mas pelo difunto
premedito esperada, desejada ao ponto de negar ar aos pulmões, como que desaprendendo por conta a tradição da espécie, quando nos foi dito a sugar ar como vida. Recorda. Do trabalho
exausto no mangue, com os braços atolados na lama, respirando com tamanha
voracidade e tão perto da umidade barrosa que lhe sujam as narinas. Fato análogo,
outros humanos sujam suas narinas, de sangue. Imagina cada detalhe. O corpo
aberto ao meio, às mãos cobertas com luva plástica, manchas de sangue seco, a
invadir as entranhas, puxando em um solapo o coração, como se extrai uma pedra brilhante da terra. Entre os dedos o maço de carne se debate como um peixe. O uniforme que o contempla tem também, brilho, nos olhos. Contudo, são brilhos diferentes no coração reluz a vida, nos olhos vidros a morte, o ganho, o sague lucro. Sem muito esforço se conclui: cada animal é um coração. E se assim o é, temos uma manha de azul límpido. Um coração peixe esta preso na praia. Toda a energia do seu corpo aquático se concentra em um debater-se. Irrompe o ar em salto alguns segundos, instante onde é criatura de todos os planos, da água, da terra e ar. Nessa eufória suas escamas descarnam, desfigurando-o, a pele
desprotegida queima ao sol, os olhos úmidos, sujos de areia pontiaguda, lhe marcam as retinas. E a umidez dos olhos que aumenta na tentativa de espusar os grãos seria vista por alguém de fora como choro. Num impulso ultimo força um pulo, vai voltar ao mar? - Não.
Uma bota infantil o pisa. Vira-o do avesso. Os olhos outrora contraídos, esbugalham.
As algas amarelas semi digeridas precipitam pelo nariz. - É domingo, as crianças
vem brincar na areia. Mais tarde alguém reclama. A areia esta suja. Tem cheiro
de peixe podre. Morte, mãos, coração e
peixe encadeiam-se em descasos. As nuvens carregadas de um escuro denso desabam.
Em fúria
os trovões gritam aos quatro cantos, meio sem alvos, caem aleatrorios, e desse acaso acabam por formar arvores
de luz no céu. A chuva vem primeiro como um pranto de mãe em luto, ininterrupto, com gotas subquaticas, quente torrente tropical.. Transformam-se logo, em soluços
resentidos de criança, frutos daquela linha fina onde não se sabe se ainda quer
chorar, chover. Os carros, guiados, por homens e motores , que se imitam, firmemente fundidos em maquina, de ferro, plastico, sangue e apátia. Seguem juntos nas
costas de um dragão asfáltico. Aceleram para fugir da absurda verdade.
O barro e a água correm em uma fina camada, uma folha de liquido turvo, onde se
pinta o vaivém sem sentido das ruas.