sexta-feira, 9 de maio de 2014

DUAS HORAS

                    



      Já eram duas da madrugada. Na cabeça a ideia da semana manifestou-se. Como fazem as verdadeiramente boas, insanas, nascidas de alguma profundeza borbulhante. Eram duas, as horas, cinco, as noites, e um, o amor. As horas persistem. Eis que essa é sua natureza, domar a matéria, compô-la em sistemas, obriga-la à articulação. Ventura e desventura do tempo. Pois que cada relação, cada choque, mínimo que seja entre dois produtos – dois temperos, dois átomos, dois corpos... – será a explosão revolucionária de uma transformação, multiplicada em escala crescente, diversificada em cada caso. E por mais que o tempo cumpra a contenção, nunca poderá reder sua antítese: jogo uma pena no vento, ela dança de forma única, irrepetível; encontro uns olhos doces, beijo-os, vivo-os, partem, mas não me deixam, nem ir, nem vir, tiram-me da matéria, raptam do tempo. É então que os relógios se zangam da sua sina.
           Os dias empilharam-se, cinco, fielmente contatos, como bem aconselha o relógio. Também repetiram-se, sistemáticos, como sonhou o senhor do destino. Contudo, ainda assim dispostos, gestavam, lá no fundo, uma ideia, talvez mais, algo sem nomenclatura. Fora os últimos cinco dias vividos. Tudo culpa do primeiro que cedeu ao acaso e apresentou, com injuria, uma criatura que podia abri-me o peito. Foi uma dessas manhas em que os raios do sol gelam, fazendo o orvalho perdurar horas a fio, onde as folhas caem contadas para pintar a terra somando-se a cor azul que escorre o horizonte, tinge as montanhas, casa-se com o oceano, e nesse caso, banha corpo e alma, desse meu encanto. Eram o azul, o orvalho e o sol fresco a chave que trouxera aquela mão. Dispôs entre minhas costelas, girou-a, tremeu meu coração, deu-lhe corda, equalizou, um som de dia, que não eram mais dias, e logo, nunca mais poderia vir a ser. Vieram depois outras feiras, terças e quartas. Nelas neguei-me retamente a admitir que desconhecesse o clausuro do tempo. No fim da quarta, que a essa altura confundirá com a quinta e desejei ser sexta, aceitei a ideia que amava-a. Disse tudo ao tempo, que se apressou a conduzir seus ponteiros, articular as horas, determinando os limites. Risos. O som do primeiro eu te amo humano ainda ecoa no universo, sabe-se lá onde ira parar, vai que seja o espaço curvo mesmo, a declaração rebatera na história, e estará comovendo um coração nosso nesse exato momento. Fato é que o tempo viu a fervura das minhas ideias. Que poderia fazer! Quem poderia!
        Foi o ultimo dia a que me dei conta, uma sexta feira, quando os ponteiros tiquetaquearam duas da madrugada. Era mesmo tarte, já era denominado pela ânsia de ama-la mais, de vivê-la inteira, amaldiçoei o tempo que quisera estacar meu peito em fogo. Rolei, chorei sorrindo, enlouqueci. Sufoquei-me em seu perfume, morri das imagens do mundo, ceguei-me para os reflexos, adormeci para nunca mais voltar ao controle das horas. Quando meu peito transbordou, veio viva a sua figura, dançou comigo, encontramos os lábios, depois os corpos, fomos barcos a deriva num beijo.     
[L.B]           

quinta-feira, 8 de maio de 2014

MANIFESTO DO AMOR LIVRE




Já riscaram de sangue o amor
Foi um horror
Os corações vestidos de bandeiras
Como idolatrias,  
Cercados de inimigos
dos vasos às artérias:
riscando no pulso
fronteiras.
Fielmente,
Burocraticamente delimitadas,
modeladas,
regradas palma a palma.
O espaço da loucura,
era a boca que cala.
É o sentimento
se fez calo.

É qualquer coisa insana
Essa insensatez planejada.
Tudo departamentado,
Um armário cheio de gavetas,
Onde lá no fundo
Guarda-se uma angustia
Uma confusão.

A peça única,
Como é cada batimento a dois,
Aquilo que chama amor,
Fora o que viera
da penumbra que fez a lanterna
esquecida ao acaso no silêncio.
Dali ao destino,
luziu no fio de seda
havia uma aranha e uma morte.

Certo assim é chamar amor
Aquilo que nasce por encanto,
Que é verdade pronunciada
Sempre,
Pelo meio,
Como só pode ser
Algo de essência eufórica
Muito perto
Do sem folego.
  
A esse astro
Não cabe papel em teatro
Pois não há mascara,
Para vestir-lhe a cara.
Nem há cerca capaz de Justapô-lo
Não sem desfigura-lo.

O amor é um pássaro
Risonho ao fim da tarde,

Vivo, porque voa. 

sexta-feira, 2 de maio de 2014

NOITES DE OUTONO

As folhas, agora um pouco mais verdes, apararam o vento quente, como dedos a acenar, dão adeus continuo para a luz refletida que viaja o universo, ao mesmo tempo em que bem-vindão os olhos, o instante e poesia.  Seria o vento um motivo a escrever? Por que escrevo? Escrevo sem motivo! Aparente. Afinal o que é o aparente se não um artifício, uma ilusão retórica. Risco as páginas porque em algum momento, no escuro de uma caverna, dedos sujos de sangue marcaram a pedra e a memória nasceu mais carne e osso que os corpos. De carvão eletrônico sujo o branco, porque minha cabeça está cheia, de matéria orgânica, de impulso elétrico e por extensão, de memória, saudade... Essas verdades mudas, que à revelia dos padrões médicos, endereçamos ao coração. 


Sopra tão forte o vento, que a folha se desprende, lançada a queda livre. Aquilo é a vida da folha, uma força que a desprende. A vida é um salto. Estar encontrado é como morrer dos detalhes, dos sonhos e dos vendavais que guardam a infinitude. Aquilo que habita tanto o cristal de areia, quanto as massas estrelares. Porque tudo é grão a depender do quanto se afasta. E tudo é infinito se te comove. Comover-se nos detalhes e nos astros, modificar-se neles. Não somos mais que o fruto da interação com as formas, com os traços, cores e vibração. Não sou mais que morada da flor silvestre. Aeroplano dos aromas da primavera. Conjuro de querê-la...
A folha deita sobre o chão. Aparada na terra, mansa, canção de dois compassos, cálido, cálido... No encontro a paz se forma. O mistério enérgico, singular e sublime. Um desafio à lógica, porque dois, folha e chão, figuram uma só paisagem – marrons úmidos de outono. Similares, diluídos no mesmo som de vento. Extensões de fibras nervosas, raízes, barro que gruda, molduras da existência...  [L.B]