O bloco de gelo pálido esteve ali estático, sabe-se
lá por quantos milênios. Vieram primaveras, umas feitas distantes, outras bem
perto. Contudo, nenhuma moveu a estrutura gélida, que continuava então, parada,
selado externamente, adormecida no âmago. O sol mantinha seu ciclo, fazendo as
estações. Nos invernos, os ventos cortantes caiam sobre a imponente pedra fria,
açoitando-a ferozmente, fazendo seu núcleo mover-se em gemido. No verão, quando dias mais calorosos davam
luz, alguns raios somavam força, descobrindo as vistas do tempo um segredo de
outras eras. Humanos! Homens, mulheres, crianças, consciências criadoras...
todas compactadas dentro da grande pedra branca. A água morna que se fazia abaixo
descortinava dedos inquietos, rasgando o gelo, como estatuas de silencio. Nos
dias que se seguiram a descoberta o sol ardeu o frio, desvencilhando umas
orelhas atentas e muitos olhos atônitos, movendo-se lá e cá, meio atordoados.
Imagine a cena, grandes olhos negros, rodeados de vermelho sangue, nascidos
para a luz, mas presos, de corpos endurecidos, de mãos atadas. O calor nunca
era suficiente, logo caia a noite, os ventos do sul sopravam e o grande bloco
de gelo retomava sua dimensão, a pedra engolia novamente o segredo funesto.
“A pedra fria
rói o corpo humano
dura
porque espelha
a carnívora alma
dura
porque amordaça gritos,
surda os ecos.”
Agruras da
ganância, destino pré-visto, o sol por uma vez brilhou mais que o determinado. Isso
porque tanto se queimou em volta, tanta fumaça se fez e devastou que um mormaço
impregnou o ar, e pelo próprio sistema se criou dias de calor desértico. A
pedra derretia rápido agora, formavam-se rios quentes e densos que ganhavam
curvas sobre os corpos. Logo braços e pernas se desprendiam, e sob o calor do
sol enegreciam, retorciam e mexiam frenéticas. Pouco depois se desprenderam os
primeiros. Sua visão de fora, diante da bola incandescente, frente ao deserto e
a seu repressor milenar, gélido, era a pura devastação. Avançaram sobre a pedra
deformada e pálida, levantaram fogo, socaram, profanaram e cuspiram. E qual sábio
poderá julgá-los: “aquele que caminhou de barriga cheia entre os famintos pode
falar da paz?”.
A atitude
irada somava-se ao clima desértico, o processo acelerava, diluindo mais e mais
a pedra. Por fora e dentro o sangue fervia, tomando de gás espesso o ar acima. De
fato os ataques furiosos às vezes feriam os que ainda estavam presos. Alguns
ainda mais, porque vivendo ali congelados por tempos passaram a acreditar que o
gelo era extensão sua. O tempo continuou a correr, logo, os amantes do gelo
também se soltaram. Seu olhar de fora para dentro do grande cristal era uma
mistura de paixão febril pela pedra, com ódio fervoroso contra os hegeres.
Aquelas costelas desnudas dançando impulsivas e os pés negros de carvão,
causavam repugnância, contraste evidente com os movimentos curtos, os olhos
brancos e pele pálida dos amantes do gelo. Os bons cristãos do velho testamento
resolveram por fim reagir, uns se sentado no chão, apontando, caçoando. Outros
exaltados, exaltadores do controle, moveram socos e pontapés. Faziam também
dança envolta do gelo, contudo dança marchada, vestida de bandeira única. A
periferia criou-se nos gritos.
Pedaços de
gelo ainda caem, agora com instrumentos específicos que dão ar de escultura ao
bloco, e sabe-se lá qual será sua forma final. Uns dizem que não é nada mais
que uma caricatura amedrontadora, que tem o objetivo de assustar os eufóricos
profanadores. Outros dizem que a caricatura é um monstro que em algum momento
terá vida própria para dominar todos, inclusive seus criadores. Tratasse neste
segundo caso de um mito já vivenciado anteriormente. Aos marginais de fora,
resta às queimaduras de frio, as barrigas famintas e a confusão da opressão.
Aos que ainda permanecem lá dentro resta o medo. O gelo, embora restrinja todos
os movimentos, fornece sensação de segurança. De dentro não é preciso opinar
sobre os mais e menos selvagens. Vez ou outra se descongela um dedo aquecido
pelo sol e isso basta para contentar a existência mediana. [L.B]