domingo, 3 de novembro de 2013

NUVEM NEGRA



Por vezes abandonamos-nos em um caminho. Deixa-se a si mesmo. Como se houvesse em nós algo a se chamar de casa. E o desterro não constituísse uma condição dos nossos pés. Pés, que pela pressão atmosférica primeiro envelhecem. Logo, e não demora, para que todo o resto o siga. As memórias, penduradas por um fio fino neural, reluzente, podem não mais estar em um milésimo da métrica do tempo.
As vezes damos conta de que a vida é um sopro. É quando as nuvens escurecem que me ocorre. Esse céu tingido escuro, de cinza colossal, como face de uma consciência adulta amuada, que juntou grão a grão os ocorridos passados. Lembra-se da morte fria, desassistida por outros, mas pelo difunto premedito esperada, desejada ao ponto de negar ar aos pulmões, como que desaprendendo por conta a tradição  da espécie, quando nos foi dito a sugar ar como vida. Recorda. Do trabalho exausto no mangue, com os braços atolados na lama, respirando com tamanha voracidade e tão perto da umidade barrosa que lhe sujam as narinas. Fato análogo, outros humanos sujam suas narinas, de sangue. Imagina cada detalhe. O corpo aberto ao meio, às mãos cobertas com luva plástica, manchas de sangue seco, a invadir as entranhas, puxando em um solapo o coração, como se extrai uma pedra brilhante da terra. Entre os dedos o maço de carne se debate como um peixe. O uniforme que o contempla tem também, brilho, nos olhos. Contudo, são brilhos diferentes no coração reluz a vida, nos olhos vidros a morte, o ganho, o sague lucro. Sem muito esforço se conclui: cada animal é um coração. E se assim o é, temos uma manha de azul límpido. Um coração peixe esta preso na praia. Toda a energia do seu corpo aquático se concentra em um debater-se. Irrompe o ar em salto alguns segundos, instante onde é criatura de todos os planos, da água, da terra e ar. Nessa eufória suas escamas descarnam, desfigurando-o, a pele desprotegida queima ao sol, os olhos úmidos, sujos de areia pontiaguda, lhe marcam as retinas. E a umidez dos olhos que aumenta na tentativa de espusar os grãos seria vista por alguém de fora como choro. Num impulso ultimo força um pulo, vai voltar ao mar? - Não. Uma bota infantil o pisa. Vira-o do avesso. Os olhos outrora contraídos, esbugalham. As algas amarelas semi digeridas precipitam pelo nariz. - É domingo, as crianças vem brincar na areia. Mais tarde alguém reclama. A areia esta suja. Tem cheiro de peixe podre.  Morte, mãos, coração e peixe encadeiam-se em descasos. As nuvens carregadas de um escuro denso desabam.
        Em fúria os trovões gritam aos quatro cantos, meio sem alvos, caem aleatrorios, e desse acaso acabam por formar arvores de luz no céu. A chuva vem primeiro como um pranto de mãe em luto, ininterrupto, com gotas subquaticas, quente torrente tropical.. Transformam-se logo, em soluços resentidos de criança, frutos daquela linha fina onde não se sabe se ainda quer chorar, chover. Os carros, guiados, por homens e motores , que se imitam, firmemente fundidos em maquina, de ferro, plastico, sangue e apátia. Seguem juntos nas costas de um dragão asfáltico. Aceleram para fugir da absurda verdade. O barro e a água correm em uma fina camada, uma folha de liquido turvo, onde se pinta o vaivém sem sentido das ruas.   






Um comentário:

  1. Vou acompanhando... lendo e relendo seus textos existenciais acima de tudo, creio eu. A riqueza das imagens e sentidos que você dá é comparável a milhares de coisas que por vezes pensamos e/ou sentimos em apenas um milésimo de tempo. Intenso.

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